SEM CONTABILIDADE - Por Rubem Alves


Quinta-feira, 26 de Janeiro de 2017.

Toda vez quando fico mais perto dos livros, cheirando, tocando, lendo, me vem nos dedos uma coceira para teclar, escrever, jogar pra fora em palavas escritas neste momento o que passa na minha mente. E se por acaso estou tanto tempo ausente, sem escrever aqui no meu diário, seja porque o meu hábito de ler ficou de lado e não sento “aquela” vontade gostosa e espontânea de escrever.

Morando em outro país, longe das bibliotecas que costumava frequentar em busca de um bom livro, me sento andando sem bengala, principalmente quando tenho um momento propicio para ler e não tenho livros. A leitura é uma dos meus impulsos para correr para o computador e escrever assim coisas do meu jeito, e com liberdade para publicar no meu DMD.

Aqui vivo uma carência de livros e não sou habituada a ler no computador! Mas hoje me deparei na Internet com um texto de Rubem Alves, meu querido Rubem Alves! Claro que seu nome me chama atenção como uma tentação singular, e mesmo o texto sendo longo, logo li com prazer para saber o que ele tem escrito de interessante. E ao final do texto, me surpreendi com alguns aspectos semelhantes a história recente de minha vida!

O texto fala-se do amor, de nossos olhos, como sentimos, como vemos, olhamos, pintamos a vida! Como cobramos e somos cobrados, de nós mesmos... E o vai e vem da vida, desapegar, desaprender para aprender a ver Deus como Ele é! Etc! Eis o texto e boa leitura:

SEM CONTABILIDADE - Deus, Créditos e Débitos - Por Rubem Alves

Para escrever esta crônica, preciso de dois fios que deixei soltos. Porque eu escrevo como os tecelões que tecem seus tapetes trançando fios de linha. Também eu tranço fios. Só que de palavras.

O primeiro fio saiu do corpo de uma aranha de nome Alberto Caeiro. (Aranha, sim. Tecemos teias de palavras como casas de morar sobre o abismo.) Disse: O essencial é saber ver (…) Mas isso (…), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender (…) Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta que me pintaram os sentidos.

Volta-me à memória o meu amigo raspando a tinta das paredes da casa centenária que comprara, tantas tinham sido as demãos, cada morador a pintara de uma cor nova sobre a cor antiga. Mas ele a amou como uma nova namorada. Não queria por vestido novo sobre vestido velho. Queria vê-la nua. Foi necessário um longo striptease, raspagens sucessivas, até que ela, nua, mostrasse seu corpo original: pinho-de-riga marfim com sinuosas listras marrom.

Nós. Casas. Vão-nos pintando pela vida afora até que memória não mais existe do nosso corpo original. O rosto? Perdido. Máscara de palavras. Quem somos? Não sabemos. Para saber é preciso esquecer, desaprender.

Segunda aranha, segundo fio, Bernardo Soares: nós só vemos aquilo que somos. Ingênuos, pensamos que os olhos são puros, dignos de confiança, que eles realmente veem as coisas tais como são. Puro engano. Os olhos são pintores: pintam o mundo de fora com as cores que moram dentro deles. Olho luminoso vê mundo colorido; olho trevoso vê mundo negro.

Nem Deus escapou. Mistério tão grande que ninguém jamais viu, e até se interditou aos homens fazer sobre ele qualquer exercício de pintura, segundo mandamento – “Não farás para ti imagem” -, tendo sido proibido até, com pena de morte, que seu nome fosse pronunciado. Mas os homens desobedeceram. Desandaram a pintar o grande mistério como quem pinta casa. E, a cada nova demão de tinta, mais o mistério se parecia com a cara daqueles que o pintavam. Até que o mistério desapareceu, sumiu, foi esquecido, enterrado sob as montanhas de palavras que os homens empilharam sobre o vazio. Cada um pintou Deus do seu jeito.

Disse Angelus Silesius:

O olho através do qual Deus me vê é o mesmo através do qual eu o vejo. E assim Deus virou vingador que administra um inferno, inimigo da vida que ordena a morte, eunuco que ordena a abstinência, juiz que condena, carrasco que mata, banqueiro que executa débitos, inquisidor que acende fogueiras, guerreiro que mata os inimigos, igualzinho aos pintores que o pintaram.

E aqui estamos nós diante desse mural milenar gigantesco, onde foram pintados rostos que os religiosos dizem ser rostos de Deus. Cruz-credo. Exorcizo. Deus não pode ser assim tão feio. Deus tem de ser bonito. Feio é o cramulhão, o cão, o coisa-ruim, o demo. Retratos de quem pintou, isso sim. Menos que caricatura. Caricatura tem parecença. Máscaras. Ídolos. Para se voltar a Deus, é preciso esquecer, esquecer muito, desaprender o aprendido, raspar a tinta…

Os que não perderam a memória do mistério se horrorizaram diante dessa ousadia humana. Denunciaram. Houve um que gritou que Deus está morto. claro. Ele não conseguia encontrá-lo naquele quarto de horrores. Gritou que nós éramos assassinos de Deus. Foi acusado de ateu. Mas o que ele queria, de verdade, era quebrar todas aquelas máscaras para poder de novo contemplar o mistério infinito.

Outro que fez isso foi Jesus. “Ouvistes o que foi dito aos antigos; eu porém vos digo…” O deus pintado nas paredes do templo não combinava com o Deus que Jesus via. O deus sobre o qual ele falava era horrível às pessoas boas e defensoras dos bons costumes. Dizia que as meretrizes entrariam no reino à frente dos religiosos. Que os beatos eram sepulcros caiados: por fora brancura, por dentro fedor. Que o amor vale mais que a lei. Que as crianças são mais divinas que os adultos. Que Deus não precisa de lugares sagrados – cada ser humano é um altar, onde quer que esteja.

E ele fazia isso de forma mansa. Contava estórias. A uma delas, os pintores de parede deram o nome de Parábola do Filho Pródigo. É sobre um pai e dois filhos. Um deles, o mais velho, todo certo, de acordo com o figurino, cumpridor de todos os deveres, trabalhador.

O outro, mais novo, malandro, gastador irresponsável. Pegou a sua parte da herança adiantada e se mandou pelo mundo, caindo na farra e gastando tudo. Acabou o dinheiro, veio a fome, foi tomar conta de porcos. Aí se lembrou da casa paterna e pensou que lá os trabalhadores passavam melhor do que ele. Imaginou que o pai bem que poderia aceitá-lo como trabalhador, já que não merecia mais ser tido como filho. Voltou. O pai o viu de longe. Saiu correndo ao seu encontro, abraçou-o e ordenou uma grande festa, com música e churrasco. Para os pintores de parede, a estória poderia ter terminado aqui. Boa estória para exortar os pecadores a se arrepender. Deus perdoa sempre. Mas não é nada disso. Tem a parte do irmão mais velho. Voltou do trabalho, ouviu a música, sentiu o cheiro de churrasco, ficou sabendo do que acontecia, ficou furioso com o pai, ofendido, e com razão. Seu pai não fazia distinção entre credores e devedores. Fosse o pai como um confessor e o filho gastador teria, pelo menos, de cumprir uma penitência.

A parábola termina num diálogo entre o pai e o filho justo. Mas o suspense se resolve se entendermos as conversas havidas entre eles. Disse o filho mais moço: – Pai, peguei o dinheiro adiantado e gastei tudo. Eu sou devedor, tu és credor. Respondeu-lhe o pai: – Meu filho, eu não somos débitos. Disse o mais velho: – Pai, trabalhei duro, não recebi meus salários, não recebi minhas férias e jamais me deste um cabrito para me alegrar com os meus amigos. Eu sou credor, tu és devedor. Respondeu-lhe o pai: – Meu filho, eu não somo créditos.

Os dois filhos eram iguais um ao outro, iguais a nós: somavam débitos e créditos. O pai era diferente. Jesus pinta um rosto de Deus que a sabedoria humana não pode entender. Ele não faz contabilidade. Não soma nem virtudes nem pecados. Assim é o amor. Não tem porquês. Sem-razões. Ama porque ama. Não faz contabilidade nem do mal nem do bem. Com um Deus assim, o universo fica mais manso. E os medos se vão. Nome certo para a parábola: “Um pai que não sabe somar”. Ou: “Um pai que não tem memória”…


"Os olhos são pintores: pintam o mundo de fora com as cores que moram dentro deles." Rubem Alves